quinta-feira, 7 de maio de 2009

O ESCRAVO QUE SE TORNOU REI

Nesse tempo, reinava um grande rei sobre o povo bambara. Chamava-se Biton Kulibaly. O seu império era tão vasto que se dizia que cem cavalos de posta (que levam mensageiros com cartas e avisos), mudados com frequencia, não conseguiam atingir os limites. O centésimo cairia esgotado antes de chegar à fronteira.
Segundo o costume e as leis desse poderoso e exigente rei, cada família pagava um imposto anual de ouro ou prata, tecidos ou mel, dolo – que é uma bebida fermentada de milho – ou cereais.
Ora, certo ano, uma família da região de Niola não conseguiu juntar o mel necessário até a chegada dos soldados cobradores de impostos. A mulher implorou-lhe, o homem apelou para a clemência (bondade) do rei, os aldeões intercederam por eles, mas foi tudo em vão. Os rostos dos soldados mantinham-se tão gelados como o mármore dos vestíbulos do palácio real.
- Isso pouco importa! – impacientou-se o que parecia ser o chefe. – Um dos vossos filhos servirá de imposto... para dois anos! Que esperam?
Os infelizes pais iam lançar-se novamente de joelhos, quando um rapaz dos seus sete anos saiu da cubata (choupana coberta de folhas) familiar e se dirigiu para a praça. Era Ngolo Diarra, o filho mais velho. Atrás dele, abraçados, choravam os cinco irmãos mais novos. Ngolo tinha ouvido tudo.
- Estou pronto a seguir-vos – disse, erguendo o olhar para os cavalos dos soldados, que caracoleavam, impacientes.
Então, a mãe lançou um grande grito. O pai correu para agarrar o filho e houve um movimento na multidão de aldeões... mas já um soldado se inclinava na sela, erguia Ngolo e sentava-o no cavalo, à sua frente.
E antes que os aldeões se apercebessem do que se estava a passar, os soldados davam meia volta e deixavam Niola a galope, a caminho de Ségu, a capital.
Que poderiam fazer meia dúzia de pobres agricultores, desarmados e sem cavalos, contra os guerreiros do rei? Todos maldisseram a sua infeliz sorte e, aos poucos, o caso foi esquecido.
Foi assim que Ngolo, filho de Diarra, da região de Niola, se tornou escravo em Ségu-das-Balanzas.

A capital da nação bambara era uma bela cidade fortificada, na margem de um grande rio. Chamava-se Ségu-das-Balanzas, porque essas maravilhosas árvores – as balanzas – cresciam profusamente (abundantemente) em redor de toda a cidade. Havia quem afirmasse já as ter contado! Eram quatro mil quatrocentas e quarenta e quatro, no tempo do rei Biton.
O rei gostava do luxo e das festas quando permanecia no seu palácio de Ségu. Era um belo palácio de pedra encarnada (cor avermelhada da carne), guardado por aqueles a quem chamavam com terror de tondyons (chefes de guerra) armados – para atingir a câmara real. Aí, sentado sobre uma pele de leão – símbolo do seu poder -, rodeado por cinqüenta feiticeiros-conselheiros, poetas e músicos, Biton Kulibaly recebia os estrangeiros, ministrava justiça e mantinha-se ao corrente das importantes ou insignificantes notícias que corriam no seu reino.
Uma bela manhã, os nobres de Ségu apresentaram-se ricamente vestidos mas de expressão transtornada (perturbada). Depois das saudações, o mais velho veio inclinar-se em frente de Biton.
- Grande rei, os feiticeiros que consultamos falam de um grande perigo que te ameaça. Está em Ségu uma criança do sexo masculino que virá a tomar o teu trono logo que vista as três peças de roupa dos homens: os calções, o bubu (túnica longa e larga us. em alguns países africanos) e o barrete (gorro). Assim falaram os feiticeiros consultados por nós.
Sentado em cima da sua pele de leão, aquele a quem chamavam o Senhor das Águas e dos Homens não se mostrou impressionado. Agradeceu aos nobres, ofereceu-lhes de beber e os seus poetas cantaram para eles.
Mas, quando chegou a noite, Biton mandou reunir todas as crianças do sexo masculino da cidade no maior dos sete vestíbulos do palácio. Depois, pediu aos sacerdotes – homens muito poderosos – que lhe indicassem a criança que lhe queria roubar o trono.
Os sacerdotes reuniram-se em conselho durante várias horas. Entretanto, a noite passou e a madrugada já clareava o horizonte quando se apresentaram em frente do rei, perplexos e embaraçados: não conseguiam chegar a acordo sobre a resposta exata à pergunta que ele lhes fizera.
- A criança que primeiro abandonar a sala será a que procuras – afirmou um deles.
- Não! O último que abandonar o palácio é que será o tal, ó rei! – sustentou um outro.
Um terceiro explicou que os espíritos, invocados em segredo, não tinham respondido com clareza. Dir-se-ia que uma força extraordinária perturbava os augúrios (profecias).
- Essa criança, ó Biton, não é uma criança como as outras! Tem poderes misteriosos que se opõem aos teus. Não podemos fazer nada. Talvez que uma armadilha...
Biton Kulibaly impacientou-se com as respostas. Chamou os seus tondyons e deu ordem para que doravante os rapazes de Ségu dormissem no palácio. Os guerreiros iriam vigiá-los para que não pudessem fugir.
Depois, voltou-se novamente para os sacerdotes:
- E então, essa armadilha? – perguntou.
- Só tens uma coisa a fazer e ela só depende de ti, senhor – respondeu o sacerdote que falara em último lugar. – Pega em sete peças de oiro do teu tesouro. Manda derretê-las e transformá-las num anel, que esconderás dentro de um prato de comida. Depois, ofereces uma refeição a todos os rapazes... O que encontrar o anel será o que procuras!
No dia seguinte, Biton mandou preparar um arroz saboroso que foi colocado numa grande tigela de madeira, acompanhado de refrescos e frutas. Esse prato foi colocado à entrada do vestíbulo e o próprio rei veio presidir à refeição. A sua imponente estatura, os ricos bordados da túnica e o ar majestoso impressionaram os rapazes, que não compreendiam o motivo por que Biton se mostrava tão generoso com eles, depois de os ter encerrado no seu palácio.
- Mandei preparar este arroz especialmente para vocês – disse-lhes o rei. – Por isso, vinde e comei. E que nenhum se levante antes de o arroz acabar. É a maneira de me renderdes homenagem!
Assim tranqüilizadas, e cheias de fome, as crianças acotovelavam-se para se aproximarem do arroz preparado com tanto esmero. Apenas um dos cativos não tinha pressa: era Ngolo, o rapazinho de Niola.
- Não te demore, Ngolo! – gritavam os outros. – Vais ficar sem comida, se continuas aí à porta!
A criança foi interpelada por várias vezes, e por várias vezes se recusou a juntar-se aos companheiros. Finalmente, quando o prato estava quase vazio, Ngolo pegou num punhado de arroz, só um, e sentiu o anel na boca. Escondeu-o debaixo da língua, com receio que lho roubassem, e aguardou o desenrolar dos acontecimentos.
No fim da refeição, os outros rapazes encarregaram-no de agradecer ao rei. Ngolo não se fez de rogado e dirigiu-se a biton sem acanhamento algum, ele, um cativo... E o rei compreendeu que tinha à sua frente o rival que lhe fora predito.
- Qual de entre vós encontrou um objeto escondido no arroz? – perguntou, fixando Ngolo.
O rapazinho de Niola levou a mão à boca e deixou cair nela o anel.
- Será isto, ó rei?
Houve um movimento de curiosidade na assembleia. Como é que Ngolo conseguira falar, tendo o anel na boca? Por que artes mágicas ficara o anel no único punhado de arroz que coubera a Ngolo?
O rei Biton observava a criança que se mantinha respeitosamente à sua frente e não pegou no anel que Ngolo lhe estendia.
- É isso mesmo, Ngolo! Ele liberta-te da escravatura, rapaz de Niola. Já não és um cativo. Mas não o percas, Ngolo, caso contrário vou pensar que me traíste!
Ngolo passou essa noite atormentado, com receio que lhe roubassem o anel. Assim, no dia seguinte, coseu-o no interior da tanga, junto da pele, e pensou ter descoberto o melhor esconderijo.
Por seu lado, o rei inventou diversos pretextos para afastar Ngolo do palácio e, no segundo dia, reuniu os outros rapazes, invejosos de Ngolo.
- Vamos verificar se Ngolo é digno da minha confiança – disse-lhes. – Esta noite deitem-se junto dele no vestíbulo e esperem que ele esteja profundamente adormecido. Nessa altura, tirem-lhe o anel que coseu na tanga e tragam-mo.

Passaram-se várias noites. Mas, cada vez que um dos rapazes tentava tirar o anel, tocava em Ngolo, que acordava imediatamente e desancava (surrava) o ladrão.
Então, o rei inventou outro estratagema.
- Desafiem-no a ir tomar banho convosco ao rio e proponham-lhe que mergulhem, para ver quem fica mais tempo debaixo de água. Entretanto, um de vocês lançará a tanga dele nos rápidos (corredeira).
Ngolo dormiu tranqüilamente essa noite e, de manhã, julgou que terminara a sua provação. Por isso não desconfiou quando os outros rapazes o levaram até o rio.
Fazia um calor tórrido (excessivo) e a poeira do caminho, erguida pelo vento sufocante, cobria os arbustos, os homens e os animais com uma cor pardacenta. Para lá de toda esta poeira, o rio Djoliba tornava-se acolhedor com as suas pequenas cascatas e o musgo macio das margens. Os rapazes tiraram as tangas e Ngolo, esquecido da sua desconfiança, mergulhou, contente, na água aprazível (que dá prazer).
Mas enquanto à sua volta se ia fechando o círculo de crianças que riam e faziam apostas sobre quem agüentaria mais tempo debaixo de água, um dos rapazes agarrou na tanga de Ngolo e lançou-a muito longe. A tanga mergulhou logo num turbilhão de espuma. E um peixe-gato, que dormitava num buraco de um rochedo, engoliu-a imediatamente. Mas logo um enorme Lúcio se aproximou de boca aberta, engolindo o peixe-gato e a tanga.

Já o crepúsculo avermelhava o horizonte quando Ngolo e os seus companheiros saíram do rio. Mas na margem não estava a tanga nem o anel.
- Ai, que desgraça! – exclamou Ngolo desesperado. – Perdi o oiro que o rei me confiou! Biton vai imaginar que o traí...
E, enquanto os rapazes se afastavam, quer fugindo envergonhados, quer correndo para prevenir o rei, Ngolo ficou vagueando nas margens do rio.
A Lua surgira por detrás das nuvens e o infeliz rapaz ainda se lamentava da terrível perda.
Foi assim que os pescadores o descobriram, ainda a chorar. Ngolo recusou-se a responder às perguntas que lhe fizeram e refugiou-se junto das mulheres, que começavam a abrir e escamar os peixes, vindos nas redes.
Numa das redes, debatia-se ainda um enorme lúcio. Ngolo dirigiu-se às mulheres, pois acabara de ter uma ideia:
- Ei, mãezinhas, dêem-me uma faca para as ajudar a limpar os peixinhos!
Pensava que, desse modo, se os tondyons do rei o procurassem, não o descobririam no meio de tantas mulheres.
O rapaz acabara de escamar o sexto peixe quando o Lúcio lhe caiu aos pés. Já não se debatia. Então, Ngolo abriu-o e encontrou o peixe-gato ainda inteiro. Ao abri-lo, lançou um grito ao ver sua tanga e o anel de oiro do rei.
- Que te aconteceu? Que tens? – perguntavam-lhe as mulheres.
Ngolo sentou-se em cima da tanga e desatou a rir.
- Nada, nada! Encontrei um peixe-gato inteiro dentro de um Lúcio e isso é um bom presságio
Trabalhou ainda durante algum tempo com as mulheres, que lhe agradeceram a ajuda, e depois deixou-as, todo satisfeito. Encontrara o anel!

Já via ao longe as mulheres de Ségu, quando os guerreiros armados de sabres e fuzis que o rei mandara à procura dele o encontraram. O rapaz caminhava pelo carreiro (caminho estreito) poeirento que o sol começava a aquecer.
Doze cavaleiros rodearam Ngolo e doze sabres e fuzis lhe foram apontados. O cavaleiro da frente gritou:
- Ngolo Diarra, da terra de Niola, escravo e filho de pastores, o rei confiou-te um objeto, um anel de oiro que coseste na tanga. Onde está ele?
A tanga de Ngolo ainda estava úmida. O rapaz desfez o nó, pegou no anel e ergueu-o à altura da cabeça para que todos o pudessem ver.
- Será isto? – perguntou, desafiando os tondyons do rei.
- É isso mesmo.
Surpreendidos e embaraçados, os homens de armas baixaram os fuzis e embainharam os sabres. O guerreiro da frente pôs Ngolo na garupa do seu cavalo e regressaram a Ségu.
Naqueles dias que se seguiram, enquanto Biton Kulibaly se fechava na câmara real com os seus sacerdotes, feiticeiros e chefes de guerra, murmurou-se na cidade que o pequeno Ngolo Diarra estava protegido pelos deuses mais poderosos.
Durante várias luas, Biton ainda reinou sobre a nação bambara. Mas, um belo dia, foi substituído por um novo rei. O rapazinho escravo, roubado outrora aos pais, crescia em força e saber e seria a ele, Ngolo Diarra, que a nação bambara iria oferecer a pele de leão dos reis de Ségu, quando fosse homem.
E foi isso mesmo que aconteceu...

(Adaptados de Contos africanos: contos e lendas do folclore africano selecionados e adaptados por Marie Feraud; ilustrações de Akos Szabo. Lisboa: ed. Verbo, 1977)

Profa Cecília (História) e Selma Monteiro (biblioteca) – Moitará 2009

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